15.5.09

Um Toque Fétido!


Desvendar os mistérios por trás de uma grande composição, é uma das coisas mais fascinantes a um amante da perfumaria. Essas verdadeiras obras de arte da perfumaria, encerram a alma do perfumista: a sua cultura, os temores, as lembranças e seus desejos mais íntimos, que são poeticamente traduzidos por uma harmoniosa combinação de essências.

Essas essências, por sua vez, podem ser as mais estranhas possíveis. Algumas delas são magníficas e atraentes por si só, outras nem tanto! E sem dúvida, estas últimas são as que mais desperta
m nossa curiosidade, seja pela sua origem nojenta ou pelo seu cheiro repugnante.

Para esclarecer um pouco e aguçar ainda mais a curiosidade, postamos aqui uma tradução do texto "Qu'est-ce qui pue?" de Denyse Beaulieu, autora do livro "Sex Game Book".

A tradução do texto, originalmente postado em seu blog - Grain de Musc - foi gentilmente autorizada por Denyse Beaulieu, que também nos concedeu uma entrevista on-line que será postada aqui em breve.



UM TOQUE FÉTIDO!

(Do original "Qu'est-ce qui pue?" de Denyse Beaulieu)



Diane sortant du bain (François Boucher - Museu do Louvre)



Como Luca Turin declarou há alguns anos, para Chandler Burr em O Imperador do Olfato, os perfumes franceses clássicos contém sempre, em meio a seus acordes sublimes, um toque fétido.


Como que os perfumistas descobriram, na Renascença (talvez mesmo antes), que a civeta, por exemplo, que cheira a excremento, poderia revelar outras notas e lhe dar uma profundidade aveludada, me deixa na mais profunda perplexidade. Um perfumista de uma grande Maison, a quem eu perguntei, respondeu que talvez isso venha das raízes alquímicas da perfumaria: transformar os materiais desprezíveis em ouro perfumado, dissolver a feiúra na beleza para torná-la divina...



As jóias da perfumaria francesa deixam se abater regularmente, porque fazem alusão às funções corporais mais infames, às vezes muito curiosas. Jicky, “é como se um gato tivesse defecado sobre o buquê de lavanda”. L’Eau d’Hermès, é como “ a cueca de Robert Mitchum na mochila de Grace Kelly”. Shalimar teria cheiro de fraldas de neném (usadas, “serviço” completo). Joy seria uma versão adulta dessas fraldas. Mitsouko exala os miasmas e azedumes de uma mulher idosa sem tomar banho. Bandit fede a cinzeiro e calcinha usada, ao final de uma grande soirée.



Quanto aos perfumes mais recentes, Muscs Koublaï Khan e seu bodum de uma cavalgada pela Mongólia ou L’Air de Rien de Miller Harris e suas baforadas com cheiro de cabelos sujos, também não são poupados. A nota ardida de urina sob o Miel de Bois de Serge Lutens é quase universalmente vilipendiada (a tal ponto que o perfume foi recentemente retirado do mercado).


Não se pode negar que uma vez revelado o lado fétido de um perfume, é quase impossível de se esquecer essa associação olfativa, tanto quanto usá-la (não forçaremos ninguém a se aspergir de algo que, para ela ou ele, cheira a vômito ou o azedume de nádegas mal lavadas). O que me interessa nisso, é a razão pela qual os perfumistas, requintados, quiseram utilizá-lo. Os narizes estavam tão endurecidos na época, ou a higiene pública na França estava um pouco adormecida, aos odores dos mal banhados? A bem conhecida queda que os franceses têm pelas coisas putrefatas – queijos que fedem, trufas, gibier faisandé (carne de animal selvagem em processo de decomposição) – provoca uma perversão dos gostos olfativos?


Seria talvez, porque o perfume, longe de ser concebido para mascarar os odores do corpo, é uma evocação sutil do animal escondido sob a seda e o veludo?


A etimologia da palavra empregada por várias línguas latinas para prostituta, puta, é supostamente derivada de putida (pútrida ou putrefata). As prostitutas tinham a “reputação” (palavra “interessante” *) de usar excesso de perfume: acreditava-se também que elas exalavam todas as secreções que se decompunham em seus corpos. Que elas apodreciam por dentro e transmitiam essas poções maléficas a seus amantes: que elas eram cadáveres ambulantes, ainda mais temíveis por serem belas. Eram os agentes de corrupção da sociedade (leia Nana de Zola para ver uma representação particularmente histérica desse medo-fascinação).


De certa forma, a perfumaria francesa clássica carrega o eco dessa mistura de corrupção e beleza. A qual indubitavelmente se tornou insuportável à maioria do público. A idéia ultrapassada segundo a qual se usa um perfume para mascarar a falta de higiene, ainda não foi erradicada nos países mais puritanos. E nas culturas obcecadas pela limpeza, as quais até inventaram o desodorante íntimo feminino, tudo o que pode fazer o olfato se lembrar de nossa natureza mamífera é nojento.


Alguns apreciadores de perfume se deleitam com o indol do jasmim ou com o fedor de suor do cominho, com um delicioso frisson que acompanha a superação dessa aversão (mas muitos hesitariam em usar esses perfumes em público). Tom Ford, muito esperto, sabia perfeitamente o que fazia quando anunciou que queria que um de seus perfumes tivesse o cheiro da genitália masculina: ele especulava sobre o interesse que se sente pelas coisas potencialmente repugnantes.


As tendências do mercado vão, no entanto, em sentido contrário e, para um Sécrétion Magnifique que cheira a esperma e sangue, há centenas de perfumes que cheiram a pele recém-banhada. O perfumista francês citado acima é muito pessimista quanto ao futuro anunciado por essa perfumaria asséptica. Para ele, esses cheiros duvidosos nas grandes composições são precisamente os que lhe dão profundidade, lhes fazem passar de bonitos a belos. Os perfumes, esses cemitérios de pétalas (quantas morrem para cada frasco de Joy?) são talvez os memento mori odoríferos de nossas carnes voluptuosas e corruptíveis.


Afinal de contas, até mesmo as flores apodrecem.





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Sex Game Book - Denyse Beaulieu

Desde os mais antigos tratados sobre o erotismo até o desenvolvimento do cibersexo. Sex Game Book percorre todas as facetas da cultura sexual: literatura, mitologia, cinema, artes, ciências, objetos, lugares e fenômenos da sociedade.

Repleto de questões e mais de 300 ilustrações, é uma verdadeira enciclopédia. De um modo lúdico, oferece uma visão cultural e multidisciplinar inédita, como nenhum outro livro já escrito.



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Diane sortant du bain, tela de François Boucher (1703-1770), Museu do Louvre:


Diane, Deusa da Caça, repousa após o banho, enquanto que abaixada à sua esquerda, uma Ninfa admira seus pés. À esquerda da Ninfa, dois cães, sendo que um deles parece alterado, como se estivesse percebendo a presença de um intruso. À direita de Diane, o fruto da caça: duas perdizes e uma lebre.



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Um comentário:

  1. Oi Moisés. Este texto está fantástico! E a tradução manteve a vivacidade da narrativa. O estilo.Adorei!
    Realmente é um assunto fascinante.
    mas eu acredito que na maioria das vezes , estas notas que evocam secreções corporais aparecem como uma cinzelada para "animar" a fragrãncia.
    Geralmente quando elas sóa intensas a ponto de serem notadas( acontece frequentemente com o cominho) desgradam os consumidores e o perfumecai no esquecimento.
    Por mais excêntrico que seja o perfumista eles faz para ser apreciado . Ou não levaria ao público.
    E quem gosta destes odores "passados do ponto" felizmente constitui minoria.
    Beijocas.Betty

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